14.9.07

o acaso e a liberdade

leio, no público, a propósito da chegada a lisboa do filme "tianbian yi duo yun" (uma nuvem no horizonte)e transcrevo sublinhando o que mais me interessa: "cada pessoa é uma nuvem, como na imagem do meu filme. não somos autónomos, não temos liberdade suficiente - o destino empurra-nos, comanda os nossos encontros, como o vento empurra as nuvens, e isso torna as relações humanas e os encontros ocasionais muito preciosos"- palavras de tsai mingliang, não sei em que língua ditas nem por quem traduzidas para português. sei que gostei de me ver como uma nuvem, leve e flutuante, movendo-me sem esforço ou propósito próprios, para sempre aberta a tudo por que passo e a todos os que passam por mim. o acaso na origem e regulação da vida, o acaso como o meio de conciliar a liberdade com a sua ausência,

13.9.07

"cama" como medida de tempo

duas camas marcam a minha vida: uma de casal e outra de pessoa e meia. a de casal foi a cama dos meus pais (!). a de pessoa e meia foi a cama da minha avó (divorciada poucos anos depois de casada)tendo sido dela que a herdei. foi a cama da minha infância, adolescência e, até, depois de casada, durante alguns anos.
com a morte da minha mãe, o meu pai passou a ser uma pessoa só enquanto que eu, com o casamento me tinha "transformado" em duas. optámos naturalmente pela troca. o meu pai permaneceu o resto da vida na que tinha sido a cama da mãe dele e que em minha casa é a 'cama do avô'.
eu, ao trocar de marido, também troquei de cama. e desse modo, a cama do casal dos meus pais ficou primeiro desmanchada na cave e depois montada no único quarto sem dono da casa.
com a morte do meu pai herdei pela segunda vez a cama de pessoa e meia que, como a cama de casal, passou a estar ora montada ora desmontada sem eu jamais ter o desejo, ou a coragem, para habitar qualquer uma delas.
até que, em parte por razões exteriores mas, noutra parte (maior), por razões interiores, me apeteceu recuperar para a minha vida as camas da minha vida. escolhi a de pessoa e meia porque: não fazendo agora parte de nenhum casal, não preciso de uma cama larga; estando a minha filha em idade de acasalamento, não lhe dá jeito uma cama estreita; gosto da ideia da 'pessoa e meia' que acho adequada à minha pessoa - não 'casal' mas também não 'pessoa só'. a cama de embutidos renasceu no meu quarto e a cama preta no quarto da r.
tenho dormido muito bem desde que, através da cama, encontrei e ocupei o meu lugar no tempo. o que é dizer, na ordem das gerações.

votos do sr. bodhan

- sabe que nesta cama morreu primeiro a minha avó e depois o meu pai. agora, se tudo correr bem, há-de ser nela que eu hei-de morrer.
- ah dona não falar assim, vai viver mais muito tempo

o lugar

como mãe a procura fazia-se no espaço, como avó no tempo.

11.9.07

a produção das ideias

o rt publica hoje no pobre e mal agradecido um texto divertido sobre aquilo a que chama os dois modos de produzir ideias: por fermentação e por destilação. o que tem algo a ver com a distinção entre memória reflexiva (produto de um processo próxima do da fermentação) e memória restaurativa (resultado de um processo semelhante ao da destilação). eis alguns excertos do texto de rt:
(...) As ideias obtêm-se por fermentação quando se acumulam histórias antigas e novas, recortes de jornal, memórias agradáveis ou desagradáveis, afectos em decomposição, livros, coisas meio esquecidas, coisas meio lembradas. Junta-se tudo e aguarda-se que se levante uma espuma roxa a que se chama mosto. (...) Em termos muito genéricos, a fermentação é o resultado de juntar a abundância das coisas com o passar do tempo.
(...)
O processo de destilação é inteiramente distinto. Tem como objectivo separar e purificar os elementos que constituem as coisas. A matéria prima é colocada no alambique; por debaixo dela acende-se o fogo; uma parte evapora-se e sobe para uma câmara vazia, de onde por sua vez desce através de uma retorta ou serpentina arrefecida, condensando-se pelo caminho.
(...)
Para o pensamento em fermentação, tudo serve para obter ideias: os disparates podem transformar-se em arte, o mau gosto interessante, um concurso televisivo repugnante numa janela para a alma humana. O estrume é fertilizante. O pensamento em destilação, pelo contrário, precisa de concentração e silêncio; não escreve com a música ligada, não quer papéis em cima da mesa, exige limpeza e procura linhas rectas. O pensamento em fermentação aumenta. O pensamento em destilação reduz. Um inventa regras; o outro encontra leis. Para um, a confusão é criativa; para o outro, a confusão é o problema.
Não existe ninguém que pense só por fermentação ou só por destilação. A maior parte das pessoas, ou culturas, ou organizações, oscilam regularmente entre os dois modos. Este texto é produto de destilação; todos os textos que começam por “há duas maneiras de fazer algo” o são. Mas é precedido de fermentação, notória na sua metáfora de base; todas as metáforas são fermentação.

10.9.07

direito ao livre movimento

a recém formada liga dos que exigem o direito das mulheres a conduzir carros na arábia saudita tem em curso um abaixo assinado pela recuperação do direito ao que chamam de 'livre movimento'. apesar da sua (aos meus olhos caricata) retórica religiosa, assinei-o. gostei da referência, no texto, ao facto de os direitos não serem nunca "dados nem ganhos" mas sempre "conquistados" quem o quiser fazer tem apenas de enviar um email para yes2womendriving@hotmail.com, indicando nome, profissão, nacionalidade e local de residência.

na imagem a corredora de automóveis iraniana Laleh Seddigh.

quero/mais= eu/mãe

não há-de ser por acaso que na linguagem da t., uma mesma palavra, 'ké', significa 'eu' e 'quero'; nem que a palavra 'mai' denote, ao mesmo tempo 'mais' e mãe'. se no primeiro caso sinto a egocentricidade no seu estado puro (eu sou porque desejo, eu sou o meu desejo), no segundo oiço a voracidade absoluta (não há mãe que nos chegue, queremos sempre mais)

9.9.07

(in)substituiçoes

- oh avó hoje quando a mãe ligar eu queria ter uma conversa privada com ela. posso?
- claro, filhota. ou sai você da sala ou saimos nós para você poder falar sozinha com a mãe. a minha rapariga está com muitas saudades dela é?
- tenho algumas...
- coitadinha da minha rapariga querida. só tenho pena é de não poder substituir a sua mãe.
- sim, mas a mãe também não pode substituir a avó...
engoli em seco mas antes de me recompor do conteúdo (eu, insubstituível?) e da forma (a doçura firme da voz), da resposta, já ela estava a perorar, no registo, agora desprendido de uma filosofia pragmática, sobre a impossibilidade de qualquer coisa, nestemundo, poder substituir outra.

dia quatro

para quem sobreviu três dias inteiros, uma manhã não parecia ser coisa de vulto. em pé logo às 7 e meia, achei que poderia fugir com a minha couiouiou para o jardim, aí tomando ambas o pequeno-almoço, após o que ela poderia adormecer na cadeira e eu leria o jornal que entretanto tinha comprado. tudo correu como previsto só que, sendo o último dia, não a pus na cadeira mas adormecia, e deixei-a dormir, grande parte da manhã, bem enrolada numa écharpe quente, ao meu colo, em frente ao lado. três horas de felicidade perfeita, durante as quais o tempo fluiu ao ritmo do meu olhar sobre as coisas. uma atitude de aceitação e não questionação que, apesar de tudo, não impediu uma parte de mim de perguntar à outra que relevância teria na vida desta pessoa-criança o amor absoluto que sinto por ela.
chegadas a casa, ouvi o relato das coisas partidas e ou avariadas pelo f. e da boca do f. hoje tinha sido 'apenas' uma lâmpada económica que, naturalmente, ele não partira "de propósito" e pelo que me pedia desculpa. como também tinham sido sem querer (embora sem pedidos de desculpa) os paus das duas persianas, o fio do telefone, o parafuso da cama, os cactos partidos, etc). hei-de fzer a lista, só para memória futura. ou melhor tenho mesmo de a fazer para efeitos de contabilidade já que 'combinámos' que sempre que ele me estragasse algo que eu tivesse de substituir e/ou mandar arranjar, eu não lhe daria presente na festa seguinte (natal, anos).* é claro que terei de ser leniente senão arrisco-me a só lhe poder dar novo presente potr altura dos seu 21º aniversário.
foi depois a vez de os grandes serem literalmente expulsos de casa (de onde nunca querem sair) com a obrigatoriedade de subirem ao topo do jardim, correrem, jogarem à bola e fazerem, pelo menos um amigo (cujo nome e idade me tinham de dizer depois). só depois de feita alguma ginástica física e social, poderiam voltar aos écrans da tv e do computador. eu, para variar, inventaria e confeccionaria um almoço. o que não aconteceu pois o p. apareceu o que desencadeou a nossa conversa dominical, hoje alargada pelos meus queixumes sobre cansaço físico e mental.
dada a improvisão do almoço, ninguém gostou dele havendo bulhas sobre quem comia o resto da massa de ontem. nem a t. tolerou as ervilhas que tanta tinha gostado ontem, no seu segundo jantar. talvez a fome com que se levantaram da mesa, a par do sono com que se tinham levantado da cama (a par xd alguma ruindade dos donos) tenha estado na origem das discussões, pancada e choros que tanto animaram a última tarde em casa destes dias em casa da avó.
o lanche foi no entanto um sucesso. até porque, não tendo quase almoçado, tudo lhes serviu para enchedrem a barriga. ora, isso reflectiu-se no jantar, durante o qual pouco ou nada voltaram a comer.
mas, durante o jantar, chegou a mãe. e com ela se foram embora as minhas três visitas cuja média de idades é da ordem dos 4 a 5 anos. de um momento para o outro a casa, apesar de desmanchada, ficou imóvel e silenciosa. mas dentro da minha cabeça continua um barulho e uma agitação da qual não me livrarei tão cedo.

* agradeço a 'receita' ao jmv

dia três

numa casa com uma dúzia de divisões, das quais 5 são quartos de cama e em mais outras duas há sofás-cama, dormirmos quatro pessoas no mesmo quarto, das quais três, na mesma cama (apenas de casal, nem sequer king size) é absurdo demais mas é verdade. este estado de coisas resultou de vários factores, um dos quais - oriundo do facto de, das duas camas baixas (o perigo das quedas!) existentes, uma não contar por estar numa cave longe do meu quarto (não ouvir os choros ou outros pedidos nocturnos!) - tem solução: trazer a cama da cave para cima. no entanto, a preguiça e a falta de ajuda braçal têm-me vindo a adiar a resolução do problema.
hoje de manhã, ao acordar encharcada (sabe-se como as fraldas têm o comportamento imprevisível dos preservativos...), ganhei coragem para a implementar. como acontece por vezes quando estamos perante a perspectiva de uma vitória pessoal, senti forças para reunir o pessoal menor para uma reunião durante a qual dei algumas ordens para o dia: cada um tinha de arrumar a sua roupa, separando a suja da limpa, dobrando-a e metendo-a em sítios diferentes; todos tinham de deixar as tartarugas descansar, durante todo o dia, para lhes permitir recomporem-se dos cuidados intensivos (alimentação, higiene, exercício físico e convívio) que lhes têm oferecidos de há dois dias a esta parte); tinham de sair de casa e cansarem-se, pelo menos duas horas, no jardim do bairro (o que também me permitia separar a louça suja da limpa, lavar a primeira e arrumar a segunda); tinham de dormir em camas próprios num quarto a inventar (excepto o bebé que continuaria na sua própria cama no meu quarto); finalmente 'tinham' todos de comer pizza ao almoço, excepto, naturalmente a t., condenado à sua eterna sopa com um conduto qualquer migado lá para dentro (engano meu já depois de jantada se atirou-se às 'pis' como uma leoa). vieram as perguntas: mas em que quartos, em que camas? e a minha resposta: como hoje vem o sr. b. com um amigo, instalar uma nova mangueira para substituir a actual, já apenas usada como rega por aspersão ( a qual, por já não dar para encher o tanque das tutus, leva ao uso indiscriminado do regador - ora, tratando-se de um exemplar único, ele dá origem a graves desacatos no quintal, para além da criação de um estado permanente de humidade no corpo dos desordeiros) vamos fazer mudanças. ora, toda a gente com casa sabe como uma casa é, funciona como, um sistema: basta mudar um banco na cozinha para ser preciso inverter a posição do sofá da sala, o que, por sua vez, deixa de fora uma mesa, mesa essa que é preciso voltar a fazer inserir no sistema, o que, por sua vez cria novo desiquilíbrio a que se terá de atender, etc.). eu também sei mas sentindo-me capaz de mudar o mundo achei que tudo se resolveria .
faltava pouco para as cinco da tarde quando a c., o f. e a t. (na sua cadeirinha) partiram para o jardim com a m. passava pouco das cinco tarde quando chegaram o sr. b. com a mulher (em vez do amigo), uma senhora de 60 anos, adorável (a quem a t., talvez por isso, trata por 'menina'). embora contrariada por vir a menina em vez do senhor (com ela a trabalhar eu não me poderia baldar ao trabalho...), animou-me a perspectiva de ir mudar a vida familiar para melhor, dentro e fora de casa. a cama mais alta, onde dormia a m., foi desmanchada e montada no meu quarto mas, sem eu reparar, a mulher do sr. b. apressou-se a fazê-la com a mesma roupa que a tinha encontrado. o mesmo aconteceu com a minha cama, agora destinada à m., que, mal foi montada, apareceu logo feita com a minha roupa. não mandei desmanchar e refazer com o embaraço que me tolhe perante o trabalho dos outros. mas, a partir daqui tudo começou a correr para o torto. o sr. b. não trazia a tão desejada mangueira pos não tinha percebido que se tratava de uma questão urgente; o amigo não tinha podido vir com ele, pelo que só trouxera a menina, o que impedia o transporte da cama da cave para cima. só que, não tendo sido previamente avisada das alteraqções ao programa, eu tinha já a casa devidamente desmanchada para facilitar o trabalho. e foi nesse estado que eles a deixaram prometendo voltar na terça-feira.
foi portanto numa casa assistemática, para usar um eufemismo - os três quartos disponíveis, o meu, o da m. e um terceiro que tinha sido reservado às sobras (na esmagadora maioria carrinhos de bebé - singles e doubles, andarilhos - ocidentais e chineses, coloridas caixas, supostamente práticas por terem rodas, com bocados de brinquedos estragados e/ou desadequados às idades dos supostos utentes), uma cozinha em caos já que eu, para fingir que ajudava a menina nos transportes, acabei por não tratar da loiça, que as três desembarcaram vindos do jardim, cheios de fome para jantar. comecei por os por no tanque do quintal, enquanto tentava inventar um jantar, mas nada bateu certo com nada: a t., que deveria adormecer a seguir aos seus dois sucessivos jantares (o dela e o nosso) se calhar mal disposta do estômago por ter comido tanto não pregou olho senão já depois da meia-noite. o f., que tinha lanchado pouco, e que que portanto deveria jantar bem (e para o qual eu lhe fizera um gaspacho), tombou a dormir, de cuecas e meias, num sofá, do qual não voltou a sair senão em braços pouco antes da meia-noite.
pouco depois da meia-noite dei um banho quente de imersão à t., para ver se ela acalmava (e também para eu me poder lavar, coisa que não conseguia fazer há dois dias), o que resultou. trataou-se então de saber, entre os adultos, quem dormia em que cama, ou melhor em que lencóis - se a maria na minha nova cama com os lençóis dela, se eu, na dela, a aminha antiga, com os seus lençóis. optámos por tgrocar de quarto para náo termos de desmanchar e voltar a fazer as camas. já com tudo recolhido e a dormir, arrasto-me até à 'minha' casa de banho (que faz parte integrante do meu quarto onde dormia a m.). já com pasta de dentes na escova, debruço-me sobre o lavatório para começar a limpeza. lá dentro, tombados uns sobre os outros, nas suas vestimentas bizarras (um até tinha barbatanas nos pés), jaziam os cinco homúnculos do f. (com os quais ele encena quixotescas batalhas quando está a tomar banho mas que, quando ele joga no computador, a t., - que, mais uma vez veio sem sequer uma bonequita pequena para ter na mão - adopta como seus 'fis' aos quais dá de comer e passeia, no quintal na sua própria cadeirinha). completamente derrotada encetei a operação inclinada sobre o bidé. mas doeiam-me as costas e, sem saber como, senti de repente uma vontade imensa de não me deixar abater e de, pura e simplesmente, cuspir alarvamente para cima dos homúnculos que ocupavam o meu lavatório (de onde só sairam 24 horas depois). estava eu a bochechar, algo triunfante em cima das cinco criaturas, entra a c. em cena, na casa de banho implorando: 'oh avó, imploro-lhe que me deixe dormir consigo'. apesar de vir ensonada não pode ter deixado de ver os homúnculos esbranquiçados de parta de dentes e eu, ferozmente cuspinod-lhes para cima. mas foi como se nada se tivesse visto. a única coisa que a interessava era dormir comigo. sem capacidade para rir ou chorar, perguntei à m., que a escoltava, se se importava de voltarmos a trocar de quarto (e de cama, naturalmente pois aquela em que me ia deitar era a dela, alta e de pessoa só, sendo que aquela em que ela se tinha deitado era a minha, baixa e de casal). não se importava pelo fizemos a nova mudança. mudança que, de resto, teve a vantagem de nos pôr a dormir nos nossos próprios lençóis (embora eu tivesse preferido dormir nos dela pois me lembrava quão apressada tinha sido a lavagem feita aos meus logo pela manhã...