9.6.07

paisagens interiores



não são paisagens - embora deixem ver ou espelhem as paisagens onde são colocadas; não são interiores - embora as possamos ver completamente por dentro. mesmo o que está no interior de algumas destas peças vitrines vazias são vitrinas vazias. e no entanto, em algumas podemos entrar e circular e vermo-nos ao espelho. estranho reencontro este com um zé pedro croft que conheci na opacidade do mármore (também, pontualmente, do papel) e que hoje, tantos anos depois, me aparece na transparência do vidro.

formas de tratamento

voltei a confirmar, muito recentemente, que sempre que falo, espontaneamente com um morto, o trato por tu. isto, independentemente da sua idade ou sexo, da nossa relação, da forma por que o tratava em vida. não encontro explicação para o facto que apenas descobri depois da morte do meu pai, há meia dúzia de anos atrás. a questão faz-me ainda mais confusão porque, tendo crescido a ser tratada por você, no espaço da família, reproduzi o modelo, mais ou menos inconscientemente, ao fazer a minha própria família. mais, o que me leva a escolher entre 'tu' e 'você', sobretudo com crianças ou gente muito novinha, é a ternura e a proximidade. só que, ao contrário do que se diz ser a norma no português, um grau maior de intimidade e ternura pede-me logo o 'você' ou leva-me a mudar do 'tu' para o 'você'. afinal em que é que os mortos são diferentes dos vivos? serão eles de algum modo contaminados pelo que será a figura de deus? a verdade é que, nas raras conversas que tive com deus, também o tratei por 'tu'. como de resto creio fazerem todos os membros da tribo onde cresci sempre que falam com ele. mas também é verdade que não faço ideia se deus entra na categoria dos mortos ou na dos vivos. perante as questões fundamentais da vida e da morte, que importância tem a diferença no tratamento que dou às pessoas consoante elas estão vivas ou mortas? nenhuma, está visto, repito para mim própria. mas o mini mistério não deixa de me perseguir, tanto ou mais quanto os macro mistérios da vida e da morte.

when the saints go marching in...

fico sempre sem saber o que fazer quando alguém espirra ao meu lado. sobretudo com aqueles que nunca deixam de saudar qualquer espirro meu com um sonoro "santinho". sinto-me patética quando me forço a responder "santinho", pedante sempre que tento inglesar com um "god bless you", mal-educada se não digo nada. geralmente tento ser criativa saudando o espirro alheio com um "está constipada?", ou "quer que feche a janela?", por vezes "isso está mau..." ou ainda "então com alergias?". uma vez experimentei um "deus te abençoe" que me fez corar a mim e empalidecer o meu interlocutor.
acontece que paredes meias com o meu gabinete de trabalho trabalha há algum tempo um jovem fundamentalista dos "santos". como tenho rinite alérgica comecei por ser a vítima priveligiada para a sua militância. no entanto, com a passagem dos dias desenvolvi uma capacidade (que, modéstia à parte, reputo de extraordinária) que é a de não espirrar por mais doida que seja a comichão no nariz.
ontem, o tipo de meia-idade que trabalha no mesmo gabinete do miúdo, e a quem ele trata por "chefe", estava constipado. o seu espirro inaugural foi saudado por um vigoroso "santinho" (que atravessou a porta como se ela estivesse aberta). seguiu-se-lhe um segundo espirro e um segundo santinho, um terceiro e um quarto e um quinto e um sexto, todos imediatamednte seguidos pelos santos respectivos. a certa altura como aquilo não parava, comecei a ficar muito ansiosa. por um lado não conseguia fazer mais nada senão permanecer masoquisticamente à espera do próximo espirro e da respectiva saudação. por outro, sabendo que em crises de alergia se podem espirrar dezenas senão de centenas de vezes, temia pela vida do miúdo, magricelas, alto e desengonçado, que já via desfeito sob a raiva cega do sujeito de meia idade, tipo corpulento e na chamada força da idade. até que não aguentei mais a tensão e saí do gabinete para ir tomar um café. voltei cerca de vinte minutos depois, com o coração agitado pela perspectiva do que poderia ir encontrar e pelo remorso de preferir a eliminição do extremista rather do que o prosseguimento da sessão de tortura. afinal estava tudo silencioso e ordenado. não havia manchas de sangue e o tipo de meia idade já não espirrava. mas o miúdo tinha desaparecido da sua secretária. fui almoçar e quandovoltei a situação era a mesma. o miúdo ausente, o "chefe" presente. nunca mais espirrou até às 7 da tarde. mas o miúdo também não voltou a aparecer.
ainda não sei o que vou fazer na segunda-feira de manhã se, por acaso, o miúdo continuar desaparecido. mas só tenho duas alternativas: ou confrontar o "chefe" bem de caras ou telefonar à sucapa para a polícia.

8.6.07

SOS reforma

contando pelos dedos, contando pela calculadora, recontando tudo de novo, com a calculadora do outro computador e com os dedos da outra mão, não havia dúvida: ao todo eram 36 os anos de descontos, X de um lado e Y do outro. como, desde o passado 28 de maio, a idade tinha deixado de constituir um problema, a coisa parecia bem encaminhada senão mesmo resolvida. com o dossier que nos últimos tempos tenho vindo, tant bien que mal, a atamancar, apertado debaixo do braço, dirijo-me à caixa das aposentações. poucas pessoas, cadeiras vazias, pouca espera e, na minha cabeça, os muitos elogios ouvidos a uma amiga: "vai lá que elas são muito prestáveis e simpáticas e sabem informar-te de tudo". ligeira, respondo à chamada do número da senha. era um homem, nem novo nem velho, ar muito mal-disposto e que não me mandou sentar (o que eu fiz, mesmo apesar da falta de convite). começo a explicar que X anos como jornalista, Y como funcionária pública, a idade... "a senhora não se pode reformar com nada disso"! arremesa-me o sujeito à cara, interrompendo o meu dicurso sem qualquer cerimónia. mas... e agora? ...então ... como é que posso? ensaio vários modos de fazer sempre a mesma pergunta: quando é que me posso reformar se trabalho desde os 18 anos e tenho os 61 anos este ano exigidos por lei? fica claro que não posso senão aos 70 anos, isto porque, "os jornalistas, tal como os advogados, não têm acesso à pensão unificada", o que, em termos práticos, significa que para ali, para a caixa dele, tendo eu apenas 18 anos de "serviço", só consigo pedir a reforma no limite dos limites e mesmo assim com todas as penalizações inerentes a não ter o tempo completo. "então e o que faço a estes anos de descontos para os jornalistas?". não sabia, isso era lá com eles, mas que havia de receber uma pensão quando chegasse a altura. com as pernas como se fossem duas colunas de mármore a andarem pela primeira nas suas vidas, dirigi-me para a caixa dos jornalistas onde o funcionário consultado me disse nunca ter ouvido falar em tal versão. por mais que o tentasse espremer não me disse que o outro estava errado mas também não garantiu estar ele certo. apenas que lhe parecia que "contavam" (os anos de jornalista para a pensão unificada). o mármore das pernas ganhou um ligeiro calor e meti-me ao caminho de outra caixa, esta agora das pensões. pouca gente, pouca espera e a senhora que me calhou em senha, amável e prestável. a história, na minha boca já me parecia pastilha elástica, meia presa aos dentes, de tanto ser mastigada. ouviu-me com atenção e disse-me que não, que não era assim, que se eu quisesse até me fazia uma "simulação". eficiente, fez algumas perguntas certeiras, escreveu rapidamente num computador, e em menos de nada me estava a dar umas folhas de papel com listas de datas e números. "está a ver, está tudo aqui". insisti uma primeira vez: "desculpe-me pedir-lhe isto mas como o funcionário da outra caixa me disse que estivesse ou não, onde fosse, não interessava porque não pudia juntar, por ser da caixa dos jornalistas, a senhora importa-se de confirmar isso com alguém ... só para eu ter a certeza?" a conversa telefónica com uma colega, tida ao meu lado, veio no mesmo sentido: nenhuma delas sabia de nenhuma incompatibilidade como a que eu referia. "mas não sou eu, é a caixa das aposentações...e eles hão-de saber". nova conversa, novo recitativo da ladainha e segunda insistência minha: " e se eu pudesse falar com o responsável por estes serviços, para ter efectivamente a certeza, mais uma vez lhe peço desculpa, não é estar a pô-la em causa... mas o outro senhor parecia tanto saber o que estava a dizer." a pobre da mulher não desatou aos gritos comigo, nem sequer me fez má cara. limitou-se a, pachorrentamente, fazer outro telefonema, suponho que para outra pessoa, que lhe terá dito o mesmo que a primeira. "está a ver, não há-de ser nada do que lhe disseram. até lhe vou pôr aqui uns carimbos e a senhora volta lá com estes papéis e diz que aqui lhe disseram que a caixa dos jornalistas - dos advogados não sei - está na segurança social". suspiro: "mas e se ele me continuar a dizer que não"? a boa-disposição da funcionária permanece intacta: "volte lá que alguém lhe há-de dizer que sim, então não leva aí os papéis consigo?" ia-me mesmo a sair um "mas...", mas consegui controlar-me: "então boa-tarde e muito obrigada pela sua amabilidade e paciência. vou então voltar lá". saí para a rua de entre-campos, onde fiquei, muito tempo, parada em frente do antigo número 69 a olhar para o que já lá não estava. entretanto, já passaram quatro quartas-feiras e ainda lá não voltei. tenho medo. se por acaso passar por este queixume, algum jornalista (ou advogado) mais expedito em viver e mais esclarecido em jurisprudência, peço-lhe, encarecidamente, umas dicas...

6.6.07

o 'um' e o 'dois'

desculpem-me os que já não podem com as minhas chinesices mas não consigo nem quero resistir a mais esta comparação. há um viver da morte que é dominado pela unidimensionalidade do movimento - ele só se faz para cima: o cristo depois de ressuscitado ascendeu ao céu, para o céu sobe a alma do mortal para ele alcançar a imortalidade, e isto independentemente da forma como a vai viver (creio que o inferno, tal como o purgatório, tambem ficam lá para cima...) dir-me-ão que neste modelo, também se desce, nomeadamente quando o corpo desce à cova, à terra. é verdade, mas qual é o peso do corpo nesta visão do mundo? aqui o corpo não passa de um empecilho, de uma mortalha que se tem de deixar para trás, é o corpo do pecado, não é por ele que se alcança a graça. e há um viver da morte caracterizado pela dualidade do movimento - o para cima funciona em oposição complementar ao para baixo: das dez almas que, tradicionalmente, cada um de nós possui, sete são leves e etéreas, três são densas e pesadas. mal a pessoa morre, as primeiras imediatamente se elevam no ar e rapidamente se dissolvem no vazio do espaço, as últimas encetam uma lenta descida para a terra na qual, gradualmente se vão embrenhando até também acabarem por desaparecer nela misturadas. as que sobem são as hun e as que descem as po. ambas em pé de igualdade, nenhuma é de qualidade superior ou inferior à outra: a pessoa nasce, neste mundo faz mais sentido dizer 'toma forma', pela junção das hun com as po, e morre, isto é, 'perde a forma', aquando da sua separação.

perguntar não ofende

e a zézinha não fará também (alguma) falta?

o perigo de ser 'josé' (1)

uma sondagem realizada entre os dias 1 e 6 de junho, num universo de 250 lisboetas, dos dois sexos, maiores de 18 anos e recrutados aleatoriamente em 'lojas de chineses', transportes públicos, hospitais do serviço nacional de saúde, igrejas de bairros populares, tascas, prédios degradados, e juntas de frequesia, 73% afirma desconhecer quem é o zé que faz falta. entre os restantes 27%, que afirma saber quem é o 'zé' (embora, apenas 7% concorde com a ideia de que ele faça falta), 10% considera ser um elogio ao josé sócrates, 8% uma alusão ao zé povinho, 3% por cento uma crítica ao josé manuel durão barroso e 1% uma piada ao josé ribeiro e castro. será interessante comparar estes resultados com os da sondagem actualmente em curso, na qual está a ser perguntado aos lisboetas se conhecem as 'personalidades' legitimadoras do falta que o zé faz. isto porque no que a estes "zés" diz respeito a direcção da campanha não poupou nos apelidos (veja-se apenas a título de exemplo, 'josé fonseca e costa'). estratégia antroponímica que, naturalmente, visa magnificar, através do petit nom, o grande nome do candidato.

a importância de ser 'júlia'

acabo de me vir despedir de ti compadre júlio. nesta nossa última pequena e silenciosa conversa, no aeroporto, esqueci-me de referir um outro local onde ficas inteiro apesar de partido: no nome próprio da nossa juca-laruca. não vai ser só no apelido do teu pedro (como julgavas... confissão da comadre). no entanto, e conhecendo o teu arreigado machismo, de que a viagem não te vai decerto libertar, imagino que mesmo que te o tivesse recordado, isso não ia ser grande consolo para ti. em contrapartida, sei que não te será nada indiferente ter a certeza que ficas no coração dela. mais uma vez adeus, júlio, desejo-te uma boa viagem.

5.6.07

debate mata combate


depois de ter visto o filme do joão dias, as "operações saal", a única coisa que não me apetecia era assistir ao debate que se lhe seguia: não queria, nem por sombras, adormecer depois de ter estado tão acordada. dir-me-ão que a maioria dos debatentes eram eles próprios personagens da gloriosa vigília que eu gostaria de prolongar pela noite dentro. pois eram, mas lá, no filme, pela mestria imensa do realizador, as suas operações mentais eram animadas (no sentido de oxigenadas) pelas operações vitais dos outros protagonistas (ausentes no debate) e, decerto, pela vitalidade própria deste grande filme. afinal, depois de ver o que é verdade, a quem apetece observar o que é mentira? quem discorda de prévert quando ele escreve que le monde mental/ment/monumentalment? após a experiência de ser, quem deseja não-ser? quem discorda do c. amaral dias quando ele diz que sou onde não penso, onde penso não sou? não sei quem teve a ideia de promover um debate depois de um combate mas ela parece-me tão abusiva como, se, logo após um fantástico/orgástico encontro amoroso, alguém se lembrasse de pedir aos participantes/amantes para se separarem, vestirem e aperaltarem para debaterem as importantes questões do sexo e do amor. é que depois de um combate, pode-se estar "pronto para outro" (uns mais que outros naturalmente, o que, como se prova, nada tem a ver com a idade) mas não se tem força nem desejo para um debate.

a não perder

ou melhor, a ganhar, esta bela crónica da matilde.

4.6.07

o perigo da infelicidade

andava a pensar o que se há-de pensar a cada 4 de junho, sobre o que uns chamam o massacre e outros o incidente de tian'anmen, há 18 anos atrás, quando, por mero acaso, oiço um sobrevivente a dizer o seguinte: durante muito tempo depois, já instalado em paris, continuava a ter alucinações. uma vez, viu, "nos campos elísios, um blindado a esmagar um estudante". estava, dizia, "sozinho nos campos elísios" e começou a chorar, a chorar convulsivamente. agora, no entanto, tem a certeza de que "é perigosa toda essa infelicidade".

uniões de facto

não há uma história minha e uma história tua, só há a nossa história. tal como me disseste teres dito aos teus alunos que não havia uma história do west e uma história do rest mas tão só a história da humanidade.

convalescendo

3.6.07

pm bu jian le

"smoke and mirrors / special effects / a little fear a little sex", como subtítulo do estado civil, bastaria para o tornar no meu blog preferido. mas não, há muito mais que o recomenda aos meus sentidos. ou melhor, não há nada mais porque (à excepção das imagens femininas cuja sucessão regular me lembra o calendário exposto no sapateiro aqui da rua) tudo o que o pedro mexia lá escreve, segue, na letra e no espírito, essa bela epígrafe. sinto a sua falta e registo que já passaram 12 dias desde que ele desapareceu da blogosfera.

confissões

- confesso que não percebo essa tua ideia do "tempo novo"... ou dos "tempos novos". então e o que é um "tempo velho"? para mim, é da própria natureza do tempo, o que quer que seja que o tempo seja, ser "novo". todo o tempo é necessariamente inaugural...
- então e o passado?
- mas o passado não é tempo. quando muito é "tempo passado", isto é, tempo que foi, logo que já não é ... tempo. como o futuro, for that matter. confessa... o teu problema vem do st. agostinho!
- que o foi buscar aos tempos verbais do latim...
- uma abusiva importação da língua para a filosofia que, ao retirar espessura ao presente, nos impede (de) o viver... sim porque só se pode viver (n)o presente. tu não achas?
- não sei...confesso que não sei.

grafitis

- como é que soube que eu estava doente?
- porque você agora tem uma parede onde vai rabiscando a sua vida.
que ideia fantástica! obrigada j.

in memoriam

de bernice, falecida no dia 2 de junho de 2007, na taipa, raem, rpc, aqui fica a odyssey of a cockroach, obra da autoria de yoko ono (who else?)

"a minha cama"



após 3 dias e noites
de febre e dores no corpo, lembra a de tracey emin...