I – O MEU VIZINHO SAPATEIROFui levar o cão à rua. O meu vizinho, sapateiro – sem as vestes de trabalho habituais – era domingo… “dia de ver a Deus e à Joana” – saiu-me ao caminho e enquanto falava: - Como está?! – meteu-me um papel no bolso da camisa. Disse-lhe: isto vai mal: Estou pronto: - Dói-me tudo! Olhou-me por momentos concentrado e sentenciou: é a P.D.I.. A P.D.I.? O que é isso? Perguntei. É a porra da idade, esclareceu. Concordei.
Quando cheguei a casa tirei o telemóvel do bolso da camisa. Agarrado veio o papel que o gajo lá tinha metido. Vejam:
Surpreendido – não me lembrava… – perguntei-me: - que merda é esta? Depois recordei-me: - era o papel que o sapateiro me tinha metido no bolso… Intrigado, voltei a perguntar-me: - Quem é que terá convencido o sapateiro, de que eu é que sei quem é o Jeová?
Só Deus sabe…
II – O MEU VIZINHO CANGALHEIROAo fim da tarde, já lusco-fusco, voltei a levar o cão à rua. Encontrei outro vizinho, dono da agência funerária, localizada um pouco mais abaixo da porta do prédio onde moro.
Quase todos os dias, quando vou passear o cão, o meu vizinho cangalheiro me vê e vê como ando (… como me arrasto) cosido com dores, a ter que parar, depois de dar uma dúzia de passos – às vezes menos – e a necessidade que tenho de me “sentar” no capot de um qualquer dos automóveis que atravancam o passeio. E cumprimenta: Como está? Passou bem? Embora bem saiba – diz-lhe a larga experiência de lidar com mortos – que eu não tardo a ser mais um… no rosto, acima da linha do sorriso, vejo-lhe o brilho guloso do olho; e atrás do olho, como se estivesse impressa no pé da 3.ª circunvolução frontal ascendente (vulgo Centro de Broca) a pergunta: - “Quando é que o cabrão do velho deixa, de vez, de trazer o cão à rua?”. E, quase como se fosse seu parente – o que julgo, talvez não seja o caso – vai afagando o Buba com aparente ternura; embora, eu tenha a quase certeza de que os afagos do cangalheiro serão, no fundo, de natureza mais comercial do que afectiva: - tendo para mim, como certo, que o meu vizinho cangalheiro o que tenta é conseguir, assim, a preferência – do morto que praticamente eu já sou – na escolha da sua agência para me fazer o funeral.
…Precisamente por isso, os gemidos de prazer do cão – filho da puta, hedonista – ao receber as carícias do cangalheiro, soam sempre aos meus ouvidos, meio surdos – já não descodificam o que ouvem – como se fossem os dobres de finados da sineta, à chegada da carreta à porta do cemitério.
III – O MEU FUNERALQuando voltei a casa, deitei-me sobre a cama para descansar um bocado e de cansado que estava, adormeci. Depois – e talvez por motivo das festas do cangalheiro ao cão – sonhei que tinha morrido... E enquanto sonhava, pensei: - ora ainda bem. Já não era sem tempo... Depois vieram – ou sonhei que tinham vindo – uns gatos-pingados que pegaram no morto que restava de mim e levaram tudo para uma capela mortuária.
E lá fiquei. E, sendo certo que estava morto e não tendo, de momento, mais nada que fazer, resolvi pensar na minha vida. E enquanto assim pensava, ia passando o tempo, embora eu não soubesse exactamente, – porque estava morto – se estava a sonhar ou estava só a dormir. E em boa verdade, só poderia sabê-lo se voltasse a despertar o que não era de esperar uma vez, tudo levava a crer, que estava morto.
Entretanto vou continuar a pensar e amanhã logo vejo: - ou não acordo e confirma-se que estou morto, ou acordo e continuo a contar-vos o meu sonho. Agora vou mesmo dormir, se é que realmente ainda estou vivo, embora a sonhar que estou morto.