12.5.07

yi sheng er

para quem tanto defendeu (e felizmente constatou, ao parir) a inexistência das "dores" de parto, não deixa de ser surpreendente vir a sofrê-las, muitos anos depois. nada parece existir para aliviar a dor provocada por estes partos tardios e intermitentes, para os quais, aparentemente, não existe qualquer preparação prévia realmente eficaz. prolongados no tempo, eles não podem ser induzidos. de natureza emocional, nenhuma epidural lhes adormece o sofrimento. ao contrário dos primeiros, que produzem "objectos", os segundos "produzem" sujeitos. ou, dito de outra maneira, durante os últimos partos da nossa vida, transformamos ilusóros objectos em sujeitos reais. os quais depois teremos, necessariamente, de voltar a transformar em reais objectos interiores, voltando a metê-los dentro de nós. só aparentemente é que se trata de um movimento circular - com efeito, o objecto externalizado (no parto sem dor) não é o mesmo (a não ser no bilhete de identidade) que o sujeito interiozado(no parto com dor). do ponto de vista do que está a ser parido, trata-se de interiorizar (um)a mãe, isto é, de se ir transformando na sua própria mãe. do ponto de vista da parideira, trata-se de externalizar (um)a filha, isto é, de se ir transformando na sua própria filha. é neste sentido que me apetece agradecer o conselho telefonado do mv "não tenhas medo de ter pena de ti própria". capaz de me comover (comecei logo a chorar) e de me esclarecer (começo agora a (d)escrever).

10.5.07

partilhas

duas irmãs, ambas na casa dos 70, estão a desfazer a cada da mãe depois da morte desta. colocadas perante a dificuldade de saber qual das duas vai herdar um ou outro objecto de valor, optam por "rifá-lo". sozinhas, no meio da tralha acumulada no chão, uma escreve, em bocados de papel iguais, diferentes nomes de objectos, entre os quais, naturalmente, o do objecto em causa. a outra enrola os papéis, todos iguais e coloca-os num prato. terminada a preparação, começam a fazer as partilhas propriamente ditas. vão tirando, por turnos, as rifas, abrindo-as e lendo o que lá está escrita. aquela a quem calhar o papel com o nome do objecto é aquele que o herda. há pessoas fantásticas não há?

a celebração do humano

um filme sobre a liberdade. as pessoas têm a 'capacidade de (re)fazer as suas vida (ainda ou porque elas foram desfeitas). elas têm a agência para decidir por onde querem ir (ainda que movendo-se num terreno devastado onde o caminho se faz sobre pedras). afirmam a agência individual, de, na sua vida amorosa, escolherem a reunião ou a separação. a impiedade do contexto "natural" (construção-destruição) torna ainda mais comovente a piedade do texto "humano". o nome chinês do filme, 三峡好人, Sanxia hao ren, à letra, 'as pessoas boas de Sanxia' ('bondade' que, oralmente, conota a 'heroicidade'), ainda que apontando para essa tensão entre a desumanidade social e a humanidade individual.

um filme sobre o tempo. as duas personagens centrais viajam da província de shanxi (local do seu nascimento e do nascimento da 'velha' civilização chinesa) para sanxia (local do seu (re)nascimento e do (re)nascimento da 'nova' civilização chinesa). a sua viagem no espaço é, simultaneamente, uma viagem no tempo: ao passado (já perdido tanto para as pessoas como para a cultura) e ao futuro (ainda por conquistar pelo indivíduo e pela sociedade). como se para avançar fosse sempre preciso recuar. a vida não sendo senão um processo de continuação e transformação.

um filme sobre a realidade. as formas e a cor dos corpos masculinos (semi-despidos), a espessura e o peso dos prédios urbanos (semi-esventrados), a textura da névoa nas montanhas, a fluidez das águas do rio, são realidades físicas concretas que ocupam espaço(s). espaços separados mas interligados: de modo perene – a solidez da ponte de pedra que liga as duas margens do rio; de forma efémera – a fragilidade do arame através do qual o acrobata junta os telhados de dois prédios. a pintura conhecida por shanshui (montanha-água), omnipresente como cenário e invocada pontualmente, como objecto (na nota de 10 yuan), é usada subvertendo a tradição: parece ser usada para nos fazer ver a insignificância da natureza (as montanhas e as águas) perante o homem: a sua monumental capacidade de trabalhar e de sonhar, ou, noutras palavras, de transformar o mundo e de se transformar a si, num processo de interacção e recriação mútua a que chamamos vida.

um filme a não perder.

9.5.07

adivinha para netos

ontem adormeci com um no mar, um na terra e um no ar; hoje acordei com dois na terra e um no mar - mas um dos que estão em terra está mais longe do que o que está no mar. então, as perguntas são:
1. o que é que está no mar?
2. o que é que está em terra?
3. o que é que está perto?
4. o que é que está longe?

do texto ao contexto

do que aqui se trata, dizia num e-mail que acabo de enviar, é de 'diários escritos na terceira pessoa". eles resultam da experiência de uma nova estratégia de escrita: forma da narrativa em 3ª pessoa, conteúdo de diário escrito na 1ª pessoa. o seu objectivo é experimentar as possibilidades de não se ser 'eu' sem se transformar em 'outra' (aqui é de prestar pública homenagem ao amigo que um dia me perguntou se eu não sabia escrever na 3ª pessoa...). contava também que, para quem sempre escreveu (demasiado) confessionalmente, a escrita bloguística representava uma grande e gloriosa liberdade. e, naturalmente,(cor)respondia a uma fase pessoal na qual o meu contexto (o mundo, os outros, as coisas) se impõe claramente ao meu texto (o que faço e como faço (um)a vida).

maio

não posso estar mais de acordo com o e-mail que acabo de receber sobre a amenidade de maio e setembro. estas estações do 'pequeno calor' e do 'pequeno frio' são tempos de passagem para as estações seguintes (do 'grande calor' e do 'grande frio'). elas asseguram o próprio processo das coisas: continuam (o frio do inverno e o calor do verão) e, simultaneamente, transformam (o frio no calor e o calor no frio). a qualidade temperada deste tempo, no duplo sentido de time e weather, torna o mundo habitável - não temos de nos defender do gelo e da água nem do fogo e da seca. as coisas e as pessoas desejáveis. maio (“maduro Maio”) não é abril (“the cruelest month”)