31.8.07

beleza absoluta

era tarde na tarde. já não estava ninguém nos gabinetes próximos. só eu ainda resistia ao calor e ao cansaço. os olhos ardiam-me, semi-fechados por causa da luz estúpida do computador mas ainda assim não os tirava da página aberta em frente de mim. ouvi um passo leve aproximando-se e levantei os olhos, por cima do computador. à frente deles estava uma cara de pele muito preta na qual brilhava desmesuradamente o branco limpo de uns olhos enormes. se o meu cumprimento não tivesse sido correspondido eu teria duvidado da realidade da visão. não é habitual, pelo menos para mim, que a beleza, irrompa assim, num grau praticamente absoluto, nos locais onde trabalham os mortais.
não foi em vão que durante todo o dia seguinte esperei pelo fim da tarde. a rapariguinha voltou a aparecer leve e cerimoniosa como no dia anterior. ainda mais dolorosamente bonita. ' vou pedir-lhe se me deixa tirar-lhe uma fotografia' pensei. mas assim como apareceu ela voltou a desaparecer.
ao terceiro dia só nos cruzámos no corredor. pela farda que tinha vestida percebi que trabalhava na empresa de limpezas. e também, naturalmente, que se tratava de uma princesa vivendo na clandestinidade. foi assim que a levei comigo para férias.
ontem, de regresso ao trabalho, esperei pela sua chegada. depois de nos cumprimentarmos, cerimoniosamente como das vezes anteriores, não resisti: "já alguém lhe disse que você era muito, muito bonita?" ela parou de aspirar, levantou os olhos e hesitou, a sorrir meia-envergonhada, durante muito tempo: "sim...já". eu repeti: "é que não é muito vulgar a gente na nossa vida encontrar pessoas assim tão esplendorosamente bonitas..." e logo avancei: "importava-se que eu lhe tirasse uma fotografia?" não só não se importava como se ofereceu para amanhã (hoje) me trazer ela própria uma fotografia sua. iniciada uma conversa fácil, soube que a minha princesa tinha 20 anos, era nascida e crescida no reino de são tomé, e preparava-se para entrar num curso de psicologia, em lisboa. soube também que hoje é o último dia em que posso descansar o meu olhar cansado e ardido do fim do dia na doçura do seu sorriso cerimonioso e na escuridão brilhante da sua pele - porque em setembro começa as aulas e deixa de trabalhar nas limpezas. tirei-lhe a minha fotografia e fiquei a aguardar que hoje ela me traga a dela.