14.10.07

fluidos corporais: esperma, suor e lágrimas

a única troca verbal entre os jovens apaixonados aparece sob a forma de uma pergunta “ainda vendes relógios?” feita pela rapariga que noutro filme o encontrara nessa actividade. ao que o rapaz agora actor porno responde negativamente limitando-se a abanar a cabeça. diz o realizador algures: My films are a dialogue with myself. At the moment my feeling is, that I want to discuss the body. Body language, bodily needs, bodily functions – what the body is trying to say, that we cannot articulate verbally.
é difícil dizer-se que se adorou um filme que nos foi tão incómodo de ver. no entanto foi o que me aconteceu. um filme que filma a filmagem de filmes pornográficos, embora não sendo pornográfico, ou exactamente por não o ser, é muito mais violento e insuportável do que um filme pornográfico no qual, supostamente, não há sentimentos, mas tão só sexo. neste filme sobre filmes pornográficos, em certo sentido, pode-se dizer que não há sexo, só sentimentos. senti este filme, das duas vezes em que o vi, como um dos mais sentimentais (amor romântico) que já vi. diz o realizador algures: It is not important, what the film is trying to tell you – but what you feel about it. Think about, what you feel.
a cisão operada entre o sexo e o sentimento, na relação amorosa, resulta do facto de eles viverem num e de mundo onde o corpo se transformou numa mercadoria. diz o realizador algures: Today the body is a commodity. People sell their bodies; people watch pornography without thinking of the cost to the bodies involved.
a espantosa construção de imagens, através das quais sentimos essa (im)possibilidade do sexo, assenta na rima. neste filme as imagens rimam como as palavras num poema. e, como na poesia, é o seu paralelismo, por complementaridade ou por oposição, que faz avançar a narrativa. cada imagem prenuncia, como que contém, a imagem seguinte. cada imagem contém restos da imagem anterior, num processo sem fim de contaminação e engendração mútua.
este processo constrói, tanto a relação entre as duas narrativas paralelas (silêncio/efeito do real versus música/efeito do artifício), como as relações entre as duas sub-narrativas dentro da narrativa principal: a sub-narrativa sobre o sentimento sem sexo possível (ou o sexo tornado (im)possível) e a sub-narrativa do sexo sem sentimento.
para só recordar algumas: as lágrimas a escorrem pela cara da protagonista rimam com o suor a escorrer pelo rabo do protagonista (desta vez produzido pelo corpo e não por um artifício exterior); as ‘coisas’ pessoais que as duas raparigas perdem rimam entrem si numa relação de oposição: a pestana, que se esperaria vir do corpo, é artificial, e a chave, que não se esperaria ter a ver com o corpo, é para ele que remete (a virgindiade); a tampa da garrafa (com que a rapariga japonesa se masturba) esterilmente no interior do corpo rima com a melancia produtivamente no interior da cabeça da rapariga taiwanesa (útero mental a comprovar que o ovo precede o pinto). a melancia que num caso se bebe, e oferece para beber (sendo recusada) e noutro é comida à força (sem força para recusar). para não falar da melancia, a mais óbvia, mãe de todas as imagens deste filme. não por acaso, ela é-nos apresentada logo no início do filme, transportada pela actriz porno para ser usada como sua vagina artificial no único filme pornográfico a que assistimos realmente (nos outros apenas vemos o processo de produção, não o produto final). a metáfora cujo significado vai sendo reconfigurado ao ritmo do desenvolvimento da relação amorosa.
tocam-me particularmente neste filme os sinais por que nos é mostrada a força da vida e que, talvez, se possa fazer equivaler à força da relação de troca afectiva. relação que é também reacção como acontece no crescimento súbito e no activo fervilhar dos alimentos/ingredientes cozinhados; ou no fio de água que emerge do solo quando, em plena seca na cidade, o protagonista masculino consegue desenterrar, da camada de alcatrão, a chave da mala da protagonista feminina - a mala fechada, vinda de outra cidade e de outro filme, que nesta cidade e neste filme não chegará a ser aberta.
gostaria ainda de guardar, para memória futura, a nuvem que vi pintada no tecto do quarto de cama. a nuvem que dá o nome ao filme, tianbian yi duo yun, isto é, uma nuvem no horizonte. nuvem que, segundo Tsai, é como qualquer humano: vogando em aparente liberdade, na realidade o seu movimento é condicionado pelo vento pelo que qualquer encontro com outra nuvem não pode ser senão passageiro. daí que todos eles sejam preciosos.