20.6.08

o desconcerto português e a arte chinesa da fuga

sempre que estou em portugal sinto saudades de ser estrangeira, um estado de inocência a que (não tenho a certeza se posso dizer "naturalmente") só consigo aceder quando vivo no estrangeiro.
o que mais me incomoda, neste país, não tem a ver com o país propriamente dito, mas com a "sua" língua. também não tem a ver com a língua portuguesa, propriamente dito, mas com a infeliz coincidência de ela ser, simultaneamente, a língua "nacional" e a minha língua "materna". o problema é apenas meu e reside no domínio absoluto dessa língua, uma capacidade linguística e cultural que não procurei e da qual não me consigo libertar de modo a poder, pelo menos de vez em quando, tomar algum recuo face ao mundo exterior.
esta inevitabilidade de entender o significado de tudo o que é dito à minha volta - na rua, na rádio, no café, na bicha da repartição pública, no cabeleireiro, na televisão - é a cruz que arrasto vai para oito anos. desde que voltei que nunca mais consegui descansar. perdi toda a capacidade de viver tranquila e silenciosamente comigo (em mim) própria neste espaço onde toda e qualquer frase ou palavra dita é sempre, não apenas ouvida mas entendida. como se tivesse passado a viver no meio de um imenso e generalizado concerto cuja arquitectura não fosse feita de sons mas de significados. um desconcerto, portanto. o Desconcerto.
tantas saudades tenho tido dessa liberdade perdida que esta noite sonhei que me tinha sentado na esplanada humanamente mais agitada e vocalmente mais barulhenta da cidade de cantão (a mesma onde há anos bebi, com o meu filho d., o melhor ba bao cha da minha vida) apenas para voltar a gozar a minha perdida capacidade de ligar e desligar alternadamente a função do entendimento. concentrando-me, percebia (mais ou menos que é a maneira ideal, até porque é a única, de perceber o que quer que seja) o que ouvia; desconcentrando-me, não percebia uma palavra do que ouvia. como dantes, o que me chegava à mente era uma relaxante algarviada (!) que não se sobrepunha nem desarticulava o meu discurso interior. antes pelo contrário, a sua qualidade levemente hipnótica favorecia-lhe o fluir, tornado-o mais solto, menos racionalizado.
no meu sonho não (ha)via grande diferença entre a névoa húmida que, envolvendo-me o corpo, me dava a oportunidade de olhar sem ver, da sonora confusão discursiva que, enchendo-me os ouvidos, me permitia ouvir sem entender.