entre as personagens do filme “três tempos” - em chinês 最好的时光,isto é, o(s) melhor(es) tempo(s) - do realizador taiwanês Hou Hsiao-Hsien (侯孝贤 caracteres chineses que o pinyin transcreve como Hou Xiaoxian) fiquei presa a duas: taiwan e o cinema. são ambas construídas a partir de um fundo, simultaneamente individual e colectivo, nacional e internacional, de memórias fragmentadas manipuladas fragmentariamente.
'taiwan' é mostrado através da história da relação amorosa homem-mulher, uma relação humana cujo conteúdo-forma, dependendo das condições culturais, sociais e políticas do momento histórico, vai variando ao longo do tempo. o 'cinema' é contado através da evocação de uma linhagem de cineastas e de filmes, tanto do 'eu' como dos 'outros'.
na relação, claramente amorosa, entre estas duas personagens, taiwan representa o feminino: é o território desejado/ameaçado pelo comunismo chinês, pelo colonialismo japonês, pela tecnologismo internacional; é a ilha cuja beleza natural e incerteza cultural, constitui objecto da sedução profissional (no bilhar, no bordel, na discoteca). já o cinema está do lado do masculino, aparecendo como um agente da salvação (im)possível: pelo amor (procurado pelo soldado), pela liberdade (reivindicada pelo republicano), pela juventude (praticada pelo fotógrafo); o masculino é sobretudo o sujeito do olhar que, ao fotografar/filmar as suaso memórias individuais reinventa a memória colectiva necessária à construção de uma identidade nacional.
nenhuma destas personagens (tal como de resto os seus personificadores) é do tipo universal ou essencial: nelo contrário, elas são construídos como um processo em aberto, o resultado, sempre provisório, dos momentos históricos e das condições socio-culturais particulares em que vivem. é por essa especificidade própria que ambos se distinguem: o país taiwan face a outros países que também são ilhas, onde também se falam várias línguas chinesas, ou que também foram colonizados; o cinema de hou, face à sua própria história, face aos outros cineastas taiwaneses, chineses, internacionais e também face a outras formas de arte. taiwan não apaga as suas marcas japonesas (o nome da primeira rapariga do bilhar) como o cinema, apesar de tão falado (as muitas línguas que se ouvem no filme apesar de as personagens falarem tão pouco) não cala o seu silêncio inicial (tão eloquente no segundo tempo, o da liberdade). de resto as atmosferas dos três filmes que constituem este filme evocam atmosferas de filmes anteriores do autor: pelo 'tempo do amor', passa a memória de "os rapazes de fengui " (e também do ambiente do 'in the mood for love', do cineasta de hong kong, wang kar wei); no ‘tempo da liberdade’, respira-se a falta de ar característica de “as flores de shanghai”; e no ‘tempo da juventude’, a apatia da juventude desenvolve é a do “adeus sul adeus”.
para estas duas personagens, que sinto serem os grandes protagonistas do(s) filme(s) de hou, o presente aparece muito como a projecção, no futuro, de memórias do passado.
são pobres as 'histórias' dos três tempos, todas elas assentando em muito poucos e muito banais incidentes da vida diária. mas as imagens por que eles são narrados são de uma riqueza imensa. um luxo sumptuoso no que toca à luz, tanto quando inunda horizontalmente, através dos vidros das portas e janelas, como quando cai verticalmente de pequenas lâmpadas solitariamente suspensas dos tectos. também a 'pobreza' dos movimentos da câmara, quase sempre parada, contrasta com a riqueza da coreografia dos actores e figurantes num permanente movimento de entrada e saída de cena.
4 years ago