6.9.07

dia um

a última conversa antes de adormecemos versou a gramática (conforme referido no post anterior). não, não é bem verdade. depois disso ainda se ouviu, no escuro, a voz da c.: "oh avó, se faz favor agarre a minha mão". é certo que a 'conversa' continuou para além deste pedido mas, tendo passado de verbal a gestual não conta (no exacto segundo antes de adormecer, o f ., que estava deitado no lado esquerdo da cama, portanto, separado de mim, que estava do lado direito, por uma irmã inteira, sem eu saber como, voou por cima dela e aterrou o seu corpo magrolas em cima do meu ao longo do qual se esparramou, barriga contra barriga, ferrado a dormir)..
a primeira voz da manhã, depois de acordarmos, foi a dele (cujo corpo magrolas eu tinha depositado no seu devido lugar na cama antes, de à 1 da manhã, preparar e dar o biberon à t., a única com direito a cama própria): "oh avó eu quero gaspacho ao pequeno-almoço".
a partir daí o dia foi, como já não me lembrava que os dias pudessem ser, pautados pela actividade do comer e pelas coisas comidas, cuspidas, pedidas, digeridas, oferecidas ou recusadas.
pelas 8 da manhã, ainda só os quatro, em casa, foram torradas com pesto, azeitonas e tomate para a 'grande', pera para a piquenina, nada para o do-meio (a quem tudo, excepto pelos vistos o meu gaspacho, faz doer o dente ou a gengiva, ainda não se percebeu onde reside o problema e ele recusa-se a ser levado ao dentista). já no trabalho, a sós com a t., lanchinho a meio da manhã, na alsaciana: meia torrada e um copo de leite.
de lá voltámos embebidas ambas em manteiga e a espalhar migalhas até à passadeira, atravessada a passo de caracol (eu não tinha levado a cadeirinha) mas protegidas pela autoridade do sr. paixão que não parava de repetir "não apresse o bébé, vão descansadinhas". de novo no meu gabinete, entre as 11 e a 1, a t. continuou a espalhar migalhas da torrada cujos restos a marilu lhe tinha amorosamente colocado num saquinho para ela ir comendo a manhã. eu atendi telefonemas de casa em negociações sobre a ementa do almoço. eu determinara cachorros mas a c. queria arroz pelo que a m. perguntava se podia fazer arroz para 'acompanhar' os cachorros. o que é se responde a uma pergunta destas? faça, claro. mas a partir daí foi preciso dizer como fazer - se 2 para 1, se passando por água fria, se com ou sem azeite.
resolvido o menu, foi o regresso a casa onde os mais velhos estavam a comer sopa. ou melhor, uma comia a sopa o outro recusava-a porque lhe ardia a gengiva, ou doia o dente (não se sabe qual é o problema, etc.). enquanto a m. retoma de imediato a conversa sobre a feitura do arroz (ainda por fazer) eu apresso-me (só tenho uma hora de almoço) a migar o peixe cozido para dentro da sopa (na qual o f. a fazer-se engraçado, deita uma mão cheia de pinhões e alguns bocados de pão, o que até nem ficou mal). acabado almoço da t., como os grandes estavam no quintal a dar de comer às tartarugas (camarões secos e salsichas de lata, tiradas às que haviam de ser os cachorros), a t. exigiu comer a banana, que tinha para sobremesa, lá fora junto do tanque. metade da banana foi oferecida às tutus (que não a comeram) e a outra para a barriga da t.
como já passavam dez minutos sobre a minha hora, pisguei-me a correr sem almoçar nem dizer adeus. desse modo não me encontrei com a r. (que diferentemente de mim não pica ponto nem tem hora de almoço) pelo que esta, mal chegou, telefonou-me logo para o trabalho, onde eu acabara de chegar, do almoço, a perguntar o que é que fazia para o jantar. eu não tinha a mais pálida ideia. nem sequer tinha pensado nisso. fiquei calada muito tempo, gaguejei umas coisas e depois lembrei-me que talvez houvesse atum, se ela cozesse uns ovos e umas cenouras... mas faltava o tomate. que se lixe vai sem tomate, há alface se não estou em erro.
eram duas e meia da tarde quando decorreram estas negociações para o jantar. às 3 lembrei-me que não ia dar atum a um bebé de ano e meio. desta vez fui eu que liguei a perguntar o que é que "dávamos" à t. está visto que ninguém sabia, nem tinha quaisquer ideias ou dinheiro para as ir comprar mesmo que eu lhas fornecesse. nada mais me restava senão recorrer à minha antiga criatividade de mãe, que, como é natural, sendo eu agora avó, já não é o que foi. lá fiz o que pude dado umas instruções pelo telefone, para que, usando o pouco que tinham à mão, lhe preparassem um jantar especial sem atum.
antes das 4 e meia voltou a tocar o telefone. desta a vez a conversa era sobre iogurtes - os de pêssego, com bocados, que o f. tanto gostou, tinham-se acabado e os naturais, mesmo como açúcar, afectavam o seu problema bucal. "o que é que eu posso lanchar avó? atirei ao calhas "torradinhas com as salsichas que sobraram todas migadinhas". contra tudo o que seria de esperar, a voz animou do outro lado "boa, cachorros fritos!". desliguei e ainda pensei em tirar os telefones fora do descanso a ver se ainda fazia alguma coisa, mas pensando na doçura da noite - durante a qual a refeição que partilhámos não precisa de ser pensada nem preparada, nada do que nela comemos se entorna ou faz nódoa - senti uma nova coragem para aguentar o dia (sem começar a gritar ou a chorar). ironicamente, o telefone não voltou a tocar mas eu ainda não deixei de pensar no almoço de amanhã antevendo o problema bucal do f. e a tenra idade da t.