2.8.07

algarve, algarvio e algarvios

por um lado concordo com quase tudo o que se diz contra o que portugueses e estrangeiros, alike têm vindo a fazer ao algarve, desde os anos 60, com a activa ou passiva cumplicidade dos poderes regionais e nacionais. por outro, se olhar menos para os resultados ambientais e mais para os sociais (que, admito, são dificilmente separáveis...), o saldo da transformação parece-me mais positivo do que negativo.
a verdade é que num complexo processo social de tipo colonizador-colonizado, os nativos de classe baixa (a maioria dos ‘colonizados’) foi progressivamente subindo na escala social enquanto que a origem social dos estrangeiros em férias e/ou dos expatriados residentes foi descendo gradualmente - o que ajudou ao aparecimento de um espaço não marcado socialmente, uma zona de contacto e até de misceginização. neste terreno neutro (que parte da elite 'local' vê como uma espécie de terra de ninguém) é corrente o bilinguismo (algarvio-inglês). o facto de os expatriados não terem aprendido português mas (uma das várias variantes do) algarvio, tem vindo a contribuir mais decisivamente para o reforço de uma identidade local (pela qual alguns chegaram a temer) do que todos os esforços teóricos dos intelectuais nativos. o algarve é hoje, num certo sentido, bastante mais cosmopolita do que lisboa: as fronteiras entre as culturas e as classes são mais porosas, os algarvios relacionam-se mais estreita e directamente com o “estrangeiro” do que os lisboetas. há 30 anos os adolescentes sonhavam poder ir para lisboa estudar ou trabalhar. hoje em dia, no seu imaginário está londres e amesterdão.
no final dos anos 70 ouvi espantada duas rapariguinhas pretas a falar lacobrigense entre si (ambas oriundas de famílias pobres dos chamados retornados de áfrica, estavam numa fase avançada de localização cultural e integração social). no final dos anos 80, o forte sotaque lacobrigense dos filhos dos intelectuais lisboetas, entretanto radicados na região, voltaram-me a surpreender - eram os primeiros casos em que via a pronúncia algarvia a funcionar como mecanismo de inclusão (e não de exclusão como até aí): integração cultural e, sobretudo, da indiferenciação social. foi, contudo, no final dos anos 90, quando o algarvio passa a ser falado, de forma generalizada, pelos residentes estrangeiros, que ele se transforma no importante instrumento de manutenção e aprofundamento da identidade cultural local.
perante este algarve 'pós modernista', a nostalgia do algarve 'pré-moderno' (e, em certos casos, do que foi durante algum tempo, o algarve 'moderno') parece-me esconder a nostalgia elitista do estatuto perdido: a velha aristocracia local primeiro, ligada sobretudo ao campo, e seguidamente no tempo, uma burguesia intelectual urbana (lisboeta sobretudo) ligada ao mar impoluto e às praias desertas. nesses tempos, já tão recuados, o algarve foi, de facto, um paraíso. só que era um paraíso para meia dúzia de pessoas. para a maioria da sua população era um purgatório (sou amiga de várias famílias locais, actualmente da média burguesia, que há 50 anos atrás não tinham para comer). actualmente é um inferno para as antigas elites (parte da qual apesar do mal que diz do algarve continua, estranhamente a vir para cá) e um mundo bastante habitável para a maioria da sua população. não digo que entre ela não se possa encontrar ainda um ou outro representante ou descendente das elites desaparecidas mas a verdade é que já ninguém o reconhece como tal, tão trabalhado foi pelo local, tão aculturado foneticamente o seu português pelo algarvio. estou em crer que nem mesmo eles próprios.