5.4.07

identidade nacional

os sons da missa, transmitida pela rádio, enchem o táxi apanhado num domingo morto, na praça de londres. peço para baixar o som pois um dos buracos por onde ele sai está mesmo atrás dos meus ouvidos. o motorista acede mas continuo a perceber o que o padre diz na sua prédica. fala sobre a misericórida. no saldanha, vazio, pergunto-lhe se é católico e ainda o oiço dizer que sim. entrados na deserta fontes pereira de melo, vejo à frente de nós, duas pessoas fardadas de ciclistas (em encarnado), pedalando alegre mas cuidadosamente, lado a lado, pelo corredor do bus. sorriem-nos quando os ultrapassamos e percebo serem dois homens e de ar 'estrangeiro'. sorrio back e nisto a indignação do motorista ("estas bestas ainda têm lata para se rir de nós!") cala a compaixão do padre. mexendo-se agitadamente no assento faz-lhe sinais de que nada têm de circular por ali. os estrangeiros olham-nos verdadeiramente espantados.
olhe que eu acho que eles estavam apenas a cumprimentar-nos, desta vez é a minha voz que cala a do padre embora para, tal como ele, a defender a misercórida. além disso, lá fora (adoro esta expressão sem correspondência lógica, não dizemos 'cá dentro' para nos referir a este país), a maioria das cidades tem corredores para se andar de bicicleta por isso eles devem achar que estão a descer a rua pelo sítio certo.
sinal vermelho por alturas de uma zara ou loja de grávidas, ou zara para grávidas. o carro pára fora do corredor do bus, coladinho às bicicletas, ainda lado a lado. a indignação do motorista atinge o paroxismo. os impropérios calam de vez a voz da misercórida. o repetido gesto de juntar e separar os dedos indicadores violentamente espetados para a frente, sem a audição do comentário que o acompanhava ("e continuam lado a lado os filhos da puta!) devia parecer uma obscenidade aos ciclitas que, de resto, começavam a mostrar os primeiros sinais de medo.
descansei na passagem do encarnado para o verde. a prédica continuava a girar em torno da misericórida. por momentos, tive a esperança de que ela tivesse algum efeito no crente que me conduzia. sol de pouca dura, no entanto. sem nada que os impedisse de avançar, no corredor do bus, os ciclistas, talvez até pelo susto, aumentaram a velocidade (de passeio) a que seguiam e, sem saber que punham em risco as suas próprias vidas, ultrapassaram, lado a lado (pela esquerda, claro) o taxi forçado a marcha lenta atrás de um autocarro.
a prédica continuava mas a palavra era agora repetida em latim. ora, se em português não tinha funcionado... pouco havia já a esperar. com efeito, uma vez ultrapassado o autocarro, com grande barulho de mudanças e tubos de escape, o motorista do taxi, literalmente a espumar de uma raiva que me pareceu nacional e masculina, passou um tremendo e alarve bigode ao ciclista que vinha do lado de fora (que, juro, quase foi derrubado), assim conquistando, finalmente, o seu legítimo lugar no corredor do bus.
entre o marquês e o rato pensei nas várias coisas que me apetecia fazer e dizer. ao começar a subir a alvares cabral percebi que não já tinha tempo. nem pachorra.
ainda hoje sinto o estúpido desejo de pedir desculpa aos ciclistas. em nome provavelmente de uma identidade nacional que há tanto tempo carrego como uma cruz.