26.7.09

conde-cónego

como estava frio. àquela hora da madrugada, e a minha futura companheira do banco de trás não atava nem desatava, tomei eu a iniciativa e entrei no carro primeiro o que fez com que ela acabasse sentada à minha direita. configuração de posições respectivas que determinou um problema protocolar: você desculpe, eu, por mim, nunca me sentaria do lado direito...  
começava eu a balbuciar uma resposta para uma questão que não entendia quando ela volta à carga: é que eu sou bem-educada.
interrompi o que estava a dizer para, em silêncio, me concentrar na analise linguistica daquele rouco remoque da minha companheira: mera declaração de facto ("eu sou bem-educada") ou verdadeira implicatura ( "tu és mal-educada")?  um silêncio que em breve se transformou num interessante e generalizado debate sobre protocolo, área do conhecimento  que não domino mas na qual três das quatro pessoas a bordo do carro eram especialistas: umas por via da prática adquirida ao longo de toda uma vida profissional, outra pela"educação" teórica recebida numa infância já muito longínqua.
isto porque, sem resposta ao seu rouco remoque, a especialista de formação livresca, passou ao confronto directo, e algo abrupto, com o da experiência prática, sentado à sua frente: se você tivesse para jantar  um conde e um cónego que também é conde, qual deles é que sentava à sua direita?/  o cónego, respondeu o da formação prática sem qualquer hesitação.
vagos vestígios de vitória  na voz rouquejante da inquiridora:
- pois, era o que eu faria... foi assim que fui educada... 
e, pela primeira vez, a voz clara da condutora: 
- o conde-cónego?! então se ele além de conde também é cónego... 
comentário que impacienta o passageiro que viaja a seu lado: 
- por favor não confunda as coisas... não é disso que se trata. seja conde ou não é por ser cónego que se senta à direita.  até porque não se pode continuar a ser conde depois de se passar a ser cónego, tem de se renunciar... 
- está bem mas acho divertido ... o conde-cónego...
embora todos estivessem de acordo sobre a mais valia social do cónego face ao conde, o debate ocupou-nos durante toda a viagem. e foi  a mesma voz rouca que o tinha encetado, ainda no estoril, que o deu por terminado, já em lisboa,  ao rouquejar em voz baixa e tom desta vez condescendente e indiferente:
- eu só não percebo é porque é que ele não dá o título ao irmão...