18.4.07

wu cheren (sequelas)

lá doar o carro doei mas que me doeu doeu.
bem posso ter depois encontrado a praça de espanha (tão bem des-coberta antes de mim neste artigo) mas a verdade é que tinha antes perdido um automóvel que nenhum texto em prosa ou poesia me pode devolver. um automóvel que, como provavelmente acontece com todos os automóveis, era também um complexo objecto simbólico do dono.
por um lado, este meu carro nunca deixou (para o bem e para o mal) de ser o carro do meu pai: angustiava-me absurdamente deixá-lo parado longe de casa e, estupidamente, sentia uma leveza tranquila quando o conseguia parar em frente da porta. sentia culpa por o levar por caminhos maus (e por maus caminhos também) e sofria verdadeiramente por "ter" de o emprestar a amigos da r. que imaginava a tratarem-no à bruta, "relaxados" como diria o seu legítimo dono... ultimamente, a revisão dos 600 euros (que o tinha posto num brinco) tinha funcionado, para os meus fantasmas, como uma visita ao cemitério durante a qual tivesse conseguido estar sentada um pouco com a mão na pedra branca.
por outro lado, enquanto auto-móvel, ele permitia-me a euforia da autonomia pessoal (ou do sentimento dela) no contexto generalizadamente disfórico de tantas e tão variadas (e desvairadas) dependências pessoais e sociais: enquanto último representante de uma ilustre família (que ia do citroen 2 cavalos comprado ao sr. fazenda, ao citroen AX herdado do sr. trigoso), o ter-carro garantia-me como que a permanência no mundo dos adultos (tão desejado na infância e onde tanto tenho gostado de estar. mundo (da geração) do poder cuja entrada é assinalada (na classe social de onde falo, pelo menos) pela conquista dO carro e cuja saída (a entrada na geração declinante) é acompanhada pela sua rendição.
enfim há sempre, e até inconscientemente muitas vezes, a dinâmica da vida e do prazer. acompanhada ou não pelas palavras da sophia sobre a morte e as ruínas serem sempre sempre vencidas pela força dos sonhos num processo repetido que impede as "nossas" mãos de ficarem vazias. e daí a praça de espanha e o alívio de não ter carro, nem de pagar seguros e selos. e a esperança das poupanças que vou fazer a andar de táxi. até já imagino que posso incluir a minha doação no IRS. não é verdade que, por lei, as doações são dedutíveis nos impostos?
para além destas irrelevantes considerações sentimentais, registo ainda a minha continuada perplexidade pelo estado absolver o condutor-prevaricador (do pagamento das multas devidas pelas infracções cometidas) desde que ele esteja disposto a doar-lhe nada mais nada menos do que o próprio instrumento do crime. perceberia a lógica do estado em condenar-me (a pagar muitas multas, a entregar a viatura, no limite a ir para a prisão); não percebo que ele me perdoe em troca de um "negócio" com o qual ele fica a ganhar materialmente (o carro valia mais do que as multas todas juntas)e eu a perder material e moralmente (cometi várias infracções e fiquei impune).