3.8.07

xiezhe

a letra e o espírito deste novo blog tem o condão de nos relembrar que se escreve para se perceber o que é a escrita.

huozhe

nunca me é demais acentuar, parafraseando mao, que a vida não é propriamente um jantar de festa, nem a escrita de um artigo, nem um trabalhinho de costura ... a vida, tal como a revolução, é um levantamento.

quarteto

os quatro a caminho do camilo, no dia 1 de agosto, no meu carro. não sei se alguma vez se repetirá uma viagem semelhante (é sempre tudo tão difícil) mas a exaltação do sentimento inaugural ninguém ma tira já.

casa


soube-me bem ouvir a p. dizer que a casa tinha alma.
não sabia que esta alma era visível para os outros.
gosto que a alma desta casa esteja assim à vista para quem a quiser ver.

preto e branco

em conversa tipicamente estival sobre a capacidade individual de escurecimento da pele, pelo sol, a minha filha recorda que "o tio vasco dizia ao avô que usava sempre relógio, na praia, para poder provar que não era preto".

2.8.07

all-garve?

no ciber-café (café apesar de nada haver para beber ou comer...), há muitos cartazes anunciando entretenimentos vários para os chamados turistas: corridas de touros, cruzeiros para ver golfinhos, e, espanto dos espantos, coloridos posters anunciando "algarve safaris". além de um jeep carregado de gente loura muito sorridente, não se vêm animais selvagens nem quaisquer vestígios de savana. talvez por me ter habituado a este cartaz que hoje não me admirei ao deparar, noutro local da cidade, com um outro cartaz conotando, mais uma vez, a áfrica. nele se representava um gato meio escanzelado, em pleno salto mortal, encimado pelas palavras "algarve tiger". pergunto-me se esta africanização não fará parte do allgarve...
(quando era miúda era costume local impingir aos lisboetas mais incautos a ideia de que as luzes, em frente da baía, (da praia da rocha) eram de marrocos. talvez agora digam aos ingénuos estrangeiros que são do quénia ou da costa do marfim)

tempo e dinheiro

a propóstio de conversa a respeito de pessoas que trabalham tanto que não têm tempo para pensar, relembro o construtor civil que diz ao arquitecto: "o senhor trabalha tanto como é que tem tempo para ganhar dinheiro?"

algarve, algarvio e algarvios

por um lado concordo com quase tudo o que se diz contra o que portugueses e estrangeiros, alike têm vindo a fazer ao algarve, desde os anos 60, com a activa ou passiva cumplicidade dos poderes regionais e nacionais. por outro, se olhar menos para os resultados ambientais e mais para os sociais (que, admito, são dificilmente separáveis...), o saldo da transformação parece-me mais positivo do que negativo.
a verdade é que num complexo processo social de tipo colonizador-colonizado, os nativos de classe baixa (a maioria dos ‘colonizados’) foi progressivamente subindo na escala social enquanto que a origem social dos estrangeiros em férias e/ou dos expatriados residentes foi descendo gradualmente - o que ajudou ao aparecimento de um espaço não marcado socialmente, uma zona de contacto e até de misceginização. neste terreno neutro (que parte da elite 'local' vê como uma espécie de terra de ninguém) é corrente o bilinguismo (algarvio-inglês). o facto de os expatriados não terem aprendido português mas (uma das várias variantes do) algarvio, tem vindo a contribuir mais decisivamente para o reforço de uma identidade local (pela qual alguns chegaram a temer) do que todos os esforços teóricos dos intelectuais nativos. o algarve é hoje, num certo sentido, bastante mais cosmopolita do que lisboa: as fronteiras entre as culturas e as classes são mais porosas, os algarvios relacionam-se mais estreita e directamente com o “estrangeiro” do que os lisboetas. há 30 anos os adolescentes sonhavam poder ir para lisboa estudar ou trabalhar. hoje em dia, no seu imaginário está londres e amesterdão.
no final dos anos 70 ouvi espantada duas rapariguinhas pretas a falar lacobrigense entre si (ambas oriundas de famílias pobres dos chamados retornados de áfrica, estavam numa fase avançada de localização cultural e integração social). no final dos anos 80, o forte sotaque lacobrigense dos filhos dos intelectuais lisboetas, entretanto radicados na região, voltaram-me a surpreender - eram os primeiros casos em que via a pronúncia algarvia a funcionar como mecanismo de inclusão (e não de exclusão como até aí): integração cultural e, sobretudo, da indiferenciação social. foi, contudo, no final dos anos 90, quando o algarvio passa a ser falado, de forma generalizada, pelos residentes estrangeiros, que ele se transforma no importante instrumento de manutenção e aprofundamento da identidade cultural local.
perante este algarve 'pós modernista', a nostalgia do algarve 'pré-moderno' (e, em certos casos, do que foi durante algum tempo, o algarve 'moderno') parece-me esconder a nostalgia elitista do estatuto perdido: a velha aristocracia local primeiro, ligada sobretudo ao campo, e seguidamente no tempo, uma burguesia intelectual urbana (lisboeta sobretudo) ligada ao mar impoluto e às praias desertas. nesses tempos, já tão recuados, o algarve foi, de facto, um paraíso. só que era um paraíso para meia dúzia de pessoas. para a maioria da sua população era um purgatório (sou amiga de várias famílias locais, actualmente da média burguesia, que há 50 anos atrás não tinham para comer). actualmente é um inferno para as antigas elites (parte da qual apesar do mal que diz do algarve continua, estranhamente a vir para cá) e um mundo bastante habitável para a maioria da sua população. não digo que entre ela não se possa encontrar ainda um ou outro representante ou descendente das elites desaparecidas mas a verdade é que já ninguém o reconhece como tal, tão trabalhado foi pelo local, tão aculturado foneticamente o seu português pelo algarvio. estou em crer que nem mesmo eles próprios.

1.8.07

(a) gente 6

afinal ainda cá estou a 5. podemos passar o dia juntos em qualquer lado...

(a) gente 5

algarvio de gema. marítimo na juventude. dono de bar (na rua da barroca) na meia idade. contador de histórias toda a vida. nessa noite de frio, entre o arroz, o sal e as espinhas do safio, conta-nos que numa das suas várias viagens de contrabando de tabaco, nos anos 60, tinha aportado, já de noite, a uma enseada na costa albanesa - local onde, segundo conta, ouviu pela primeira vez a palavra 'fascismo' (certamente que não da boca de um albanês). era de noite e como não viam nada, ficam no barco emborcando copo atrás de copo até que acabam por adormecer "sem saber em que terra estavam". quando o sol os acorda de manhã, ele, ainda meio-escarado, só vendo mar azul à roda, uma grande baía dourada e recortada, exclama aparvalhado "chá lagos!"